terça-feira, 29 de maio de 2007

tarlei melo - elogio ao ócio



Elogio ao ócio



“No fim dos dias úteis
Vem os dias inúteis
Que não bastam pra lembrar
Ou pra esquecer de quem se é”

Quando ouço essa música, sempre tenho a impressão de Herbert Vianna leu o mesmo livro que eu, Eros e Civilização, de Marcuse.

Num sábado da primeira metade de 1998, devia ser maio ou junho, eu saí de um cursinho de redação (desses pré-vestibulares) e acompanhei uma amiga minha até a rodoviária. Ela foi a primeira pessoa realmente inteligente que eu conheci na minha vida, o que não é pouco para fazer alguém se apaixonar. Nesse dia eu tive uma discussão com ela a respeito da alienação das pessoas. Ela trazia aquela afirmação cruel que pregava sempre que se via sem esperanças de uma revolução: “O povo tem o governo que escolhe”. Eu tinha vinte anos, ela tinha dezessete; eu já havia trabalhado em indústria de calçados desde os dez anos de idade, coisa muito comum em Franca, então; ela sempre estudou em boas escolas e nunca precisou trabalhar, havia quatro meses que ela tinha um emprego de meio período num escritório. Eu disse a ela que ela culpava quem não tinha culpa e disse mais ou menos o que vou escrever agora.

Não se pode esperar que uma pessoa que trabalhou o dia todo (a jornada de trabalho começa com o caminho de ida e termina na volta) que chegue em casa e vá ler Karl Marx; ela vai chegar em casa e assistir à Globo, mesmo; está cansada. É muito fácil um jovem culpar um velho pela passividade, mas quando se tem que manter um emprego porque dele depende duas crianças e uma esposa, a gente vai para o serviço pensando nisso... acorda pensando nisso; levanta por causa disso. E vai levantar sempre, com aquela velha companheira, a certeza de que vai ter que fazer a mesma coisa por anos. Não há tempo para mudar a vida. Somos nós (lembrem que eu tinha vinte anos, vivia a possibilidade de uma revolução) que devemos ter compaixão e lutar pelos direitos deles, mudar a vida deles. Só somos estudantes (e eu era estudante e operário) porque outras pessoas plantam o nosso alimento e fazem a nossa roupa, isso nos dá a oportunidade de estudar. Há que se ter compaixão.

Naquele dia, ela foi embora mais cedo uns quinze minutos, mais por vontade alheia do que própria, eu fiquei. Meus pensamentos ainda iriam acompanhá-la por uns cinco anos.

Menos de dois meses depois eu já estava lendo o livro de Marcuse, lá ele dizia de uma maneira muito mais convincente as coisas que eu disse. Eu desejei intimamente ter lido aquele livro antes da conversa. Tudo que eu dizia a ela ganhava dimensões maiores do que as que realmente tinha, queria ter lido aquilo antes. No livro ele dizia que as pessoas eram controladas até mesmo em seus momentos de ócio, através do cansaço. Ele calcula assim, se bem me lembro: uma pessoa acorda às sete horas para ir ao trabalho, trabalha e chega em casa às sete da noite, foram doze horas de serviço; soma-se mais as oito horas de sono, necessárias para a maioria das pessoas viverem de maneira saudável, ocupou-se então vinte horas, sobrando apenas quatro horas; o trabalhador ainda deve jantar e tomar banho, sobrando três horas. Qual é a qualidade desse tempo restante? A pessoa está cansada, como alguém tão exaurido de suas forças vai poder questionar alguma coisa? Aí entrava o que ele chamava de Indústria do Entretenimento, que pregava a cultura hegemônica. Assim sendo, o homem seria controlado sempre, mesmo em seus momentos de ócio. Queria ter lido sobre isso antes da conversa com L.

Um comentário:

Milena Campello disse...

Eu farei um longo comentário...