sexta-feira, 20 de abril de 2007

O problema da verdade


O problema da verdade

Conheço uma menina que cresceu inventando suas histórias para enganar a sua mãe. Inventava desculpas francas para coisas pequenas, eram mais “pequenas justificativas” do que mentiras, propriamente ditas.
Sim, eu tenho esse hábito: como bom mentiroso que sou (acho!), invento graduações de mentiras para que umas mentiras sejam maiores que outras. É claro que acho que existam mentiras e “mentiras”. Todo bom mentiroso que não seja patológico, ou seja, que saiba que acabou de contar uma bela cascata, vai concordar comigo. Que porcaria é essa “verdade”, para que seja tão defendida assim?
Sou defensor de uma idéia muito particular que dá conta de que a verdade é muito útil para a mentira, pois funciona como álibi. Eu não acho que a mentira seja uma adulteração da verdade, acho que é a verdade que é um pequeno desvirtuamento da mentira.
Não se pode também colocar todas as mentiras num mesmo bornal e pronto. Isso é até tirar a arte da coisa... Da contação de histórias... Bem , voltemos à menina!
Provavelmente a mentira dessa menina deve ter começado nalguma verdade que passaria a ser utilizada como desculpa, doravante. O fato é que, ela cresceu indo às casas das amigas, um dia ela resolveu ir ao shopping com um menininho duas séries mais velho que ela, na escola (é assim mesmo que as crianças do meu tempo contavam a idade). Por que deveria ela ocupar a sua mãe com essa informação completamente nova e fora de propósito? Ela fez o que qualquer menina saudável de sua idade faria, para evitar aborrecimentos à mãe, continuou com a mesma historinha de sempre, afinal, adultos adoram rotina mesmo. Uma verdade aí, seria uma falha de caráter. Bem, assim feito, protegeu a sua mãe de uma terrível verdade: ela estava ficando mais velha e era heterossexual, iria passar a freqüentar a vida de meninos, então.
Certamente, o fato de ser heterossexual deve ter poupado suas amigas de alguns aborrecimentos, e freqüentar a casa delas continuaria sendo um programa muito seguro. E ela continuaria a freqüentar a casa de suas amigas, mesmo quando não as freqüentasse de fato. O problema da mentira não é outro senão este: não encontrar correspondente no mundo material ou objetivo que corrobore com a história já pré-definida.
Ela foi crescendo e essa história foi se tornando cada vez mais sólida e monocórdia. Essa pequena invenção de infância substituiu a verdade (por assim dizer) com vantagens. Então, quando ela se tornou adulta, ao invés de evocar a liberdade que vem com a idade, como o fazem as adolescentes ativistas e politicamente corretas, com discursos bem aceitáveis, mas com resultados bastante traumáticos aos pais, ela assumiu toda a responsabilidade de seus atos, mantendo a rotina de sua mãe. Assim feito, aquela senhora grisalha podia entregar satisfeita as chaves do seu carro para que essa menina pudesse visitar suas amigas heterossexuais. Ficava até as cinco da manhã na casa das amigas.
Claro que essas histórias sempre deixam alguma ponta solta, que os pais não podem fazer questão de perceber. Com o tempo, essa história passa a ser um acordo tácito entre as duas partes: a mãe passa a reconhecer a falta de verossimilhança da história, mas não comenta nada; a filha passa a perceber que a mãe percebeu a falta de verossimilhança da história, mas continua a contá-la.
Hoje mesmo, ela já com 28 anos, casada, sob o olhar observador de seu marido, ao ser inquirida pela mãe sobre o passado, foi acusada de mentir. Ela se defendeu, sustentando a mesma velha justificativa, evocando, é claro, o benefício da dúvida. A mãe, sem ter coletado provas suficientes das infrações filiais, teve que aceitar que talvez o seu julgamento seja injusto. Já, tarde da noite, em casa, sentamos na cama e eu disse assim a ela:
- Por que não diz a ela que ela está certa? Que mentia mesmo, afinal, já nos casamos mesmo. No final tudo deu certo, não deu? Terminou a faculdade e nem ficou grávida... Tudo deu certo, não deu? Por que não conta a verdade?
- Ela parou, sacudiu a cabeça afirmativamente, com um leve sorriso nos lábios, e completou assim:
- Deixa ela na dúvida.
Tudo deu certo, no final, não deu?
Tarlei Melo

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